CRÍTICA COMÉDIA
Corra Como um Coelho expõe no palco o insólito
que se instaurou na vida cotidiana do homem contemporâneo
GABRIELA LEITÃO
Crítica da Falha de São Paulo
O homem da contemporaneidade perdeu as particularidades que faziam dele um ser único e insubstituível. De tanto ser bombardeado pelos valores distorcidos de sua cultura, desumanizou-se. Está muito ocupado com suas obrigações para investir em a si próprio. Precisa arrumar uma maneira de ser feliz, de ter dinheiro, ser popular, estar em forma, realizar-se profissionalmente, fazer o bem para a sociedade, constituir família, plantar árvores, ser generoso e se divertir. A lista infinita de cobranças desviam-no de sua essência, abrindo espaço para o insólito se instaurar na loucura deste viver. E assim, quase naturalmente, o absurdo se impõe na vida cotidiana.
O espetáculo Corra como um Coelho, expõe no palco o que há de surrealista no dia-a-dia das relações humanas da atualidade. A peça acontece num casa estranha, habitada por bichos empalhados, móveis obsoletos e 3 personagens que parecem estar ali por obra do acaso: uma mulher automatizada com tendências suicidas e dois homens infantilizados – um se dedica a contar histórias sem nenhuma importância, o outro é um vaqueiro bastante particular, usa roupa apertada, tem tique no rosto e samba no pé. Os três são ridículos, surgem em aparições absurdas, proclamam discursos medíocres ou limitam-se a executar silenciosamente suas inexplicáveis ações.
Corra como um Coelho faz um retrato paródico da sociedade de hoje, composta por pessoas que fogem do ato de refletir. Ocupam-se com qualquer coisa. Empanturram-se de atividades insignificantes ou investem no poder verborrágico da fala. Alguns o fazem de maneira consciente, outros inconscientemente. Todos se entopem de ações ou palavras, compartilhando da mesma busca desesperada de preencher vazios existenciais.
O espetáculo criado em 2013 contou com a direção da Cia. dos Outros, com Carolina Bianchi, Pedro Cameron e Tomás Decina. Além de buscar inspiração no absurdo do mundo real, o grupo se serviu do clima surrealista dos filmes de David Lynch, do non sense da obra de Lewis Carrol, dos contos de humor negro da escritora Dorothy Parker, da estrutura do cinema mudo e das minisséries americanas.
Como conseqüência a essas múltiplas referências, Corra como um Coelho experimenta vários caminhos estéticos e temáticos, sem se fechar em nenhum. A confusão é intencional e gera questionamentos permanentes no espectador. Ele se pergunta o que realmente se passa em cena, como é possível existir uma peça sem lógica alguma e quem são os três personagens, os quais, desafiando padrões do teatro tradicional e da vida, surgem no palco, desaparecem e depois voltam a aparecer. Eles dançam e cantam músicas de diversos estilos. Atiram, são baleados, morrem e ressuscitam. Com champagne, também matam a sede de seus bichos empalhados e esquecem suas frustrações.
A comédia Corra como um Coelho tem a qualidade rara de combinar humor e reflexão. Sua trama faz mais do que divertir, tem o poder de inquietar sua platéia, convidando-a a eliminar idéias pré-concebidas sobre a arte do palco e do existir.
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