terça-feira, 20 de agosto de 2013

Corra Como um Coelho expõe no palco o insólito que se instaurou na vida cotidiana do homem contemporâneo

CRÍTICA COMÉDIA 

Corra Como um Coelho expõe no palco o insólito
que se instaurou na vida cotidiana do homem contemporâneo

Damon Winter/Reuters

Os atores Rodrigo Bianchini (à direita), Carlos Canhameiro e Michele Navarro em cena do espetáculo

GABRIELA LEITÃO
Crítica da Falha de São Paulo

O homem da contemporaneidade perdeu as particularidades que faziam dele um ser único e insubstituível. De tanto ser bombardeado pelos valores distorcidos de sua cultura, desumanizou-se. Está muito ocupado com suas obrigações para investir em a si próprio. Precisa arrumar uma maneira de ser feliz, de ter dinheiro, ser popular, estar em forma, realizar-se profissionalmente, fazer o bem para a sociedade, constituir família, plantar árvores, ser generoso e se divertir. A lista infinita de cobranças desviam-no de sua essência, abrindo espaço para o insólito se instaurar na loucura deste viver. E assim, quase naturalmente, o absurdo se impõe na vida cotidiana. 

O espetáculo Corra como um Coelho,  expõe no palco o que há de surrealista no dia-a-dia das relações humanas da atualidade. A peça acontece num casa estranha, habitada por bichos empalhados, móveis obsoletos e 3 personagens que parecem estar ali por obra do acaso: uma mulher automatizada com tendências suicidas e dois homens infantilizados – um se dedica a contar histórias sem nenhuma importância, o outro é um vaqueiro bastante particular, usa roupa apertada, tem tique no rosto e samba no pé. Os três são ridículos, surgem em aparições absurdas, proclamam discursos medíocres ou limitam-se a executar silenciosamente suas inexplicáveis ações. 

Corra como um Coelho faz um retrato paródico da sociedade de hoje, composta por pessoas que fogem do ato de refletir. Ocupam-se com qualquer coisa. Empanturram-se de atividades insignificantes ou investem no poder verborrágico da fala. Alguns o fazem de maneira consciente, outros inconscientemente. Todos se entopem de ações ou palavras, compartilhando da mesma busca desesperada de preencher vazios existenciais. 

O espetáculo criado em 2013 contou com a direção da Cia. dos Outros, com Carolina Bianchi, Pedro Cameron e Tomás Decina. Além de buscar inspiração no absurdo do mundo real, o grupo se serviu do clima surrealista dos filmes de David Lynch, do non sense da obra de Lewis Carrol, dos contos de humor negro da escritora Dorothy Parker, da estrutura do cinema mudo e das minisséries americanas. 

Como conseqüência a essas múltiplas referências, Corra como um Coelho experimenta vários caminhos estéticos e temáticos, sem se fechar em nenhum. A confusão é intencional e gera questionamentos permanentes no espectador. Ele se pergunta o que realmente se passa em cena, como é possível existir uma peça sem lógica alguma e quem são os três personagens, os quais, desafiando padrões do teatro tradicional e da vida, surgem no palco, desaparecem e depois voltam a aparecer. Eles dançam e cantam músicas de diversos estilos. Atiram, são baleados, morrem e ressuscitam. Com champagne, também matam a sede de seus bichos empalhados e esquecem suas frustrações. 

A comédia Corra como um Coelho tem a qualidade rara de combinar humor e reflexão. Sua trama faz mais do que divertir, tem o poder de inquietar sua platéia, convidando-a a eliminar idéias pré-concebidas sobre a arte do palco e do existir.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

O simulacro satírico de CORRA COMO UM COELHO tem como grande trunfo a trinca dos excelentes atores-criadores


CRÍTICA COMÉDIA 

simulacro satírico de CORRA COMO UM COELHO tem como
grande trunfo a trinca dos excelentes atores-criadores

Chuck Close/Reuters
Os atores Daniel Gonzalez (à direita) e Tetembua Dandara em cena do espetáculo

ALEXANDRE MATTO
Jurado do prêmio ESSO

Ao adentrar na platéia da Sede da Cia. LCT, com o cenário já iluminado, o espectador tende a levar um choque: em cena um grande cenário de gabinete. Construção rara nos dias de hoje, sobretudo por conta de ásperos serem os tempos que nos é dado viver... Parte da grana que entra para o grupo, e que provavelmente, não deve ser muita deve destinar-se ao transporte do material de cena.
Ao deparar-se com aquele material cenográfico – e é inevitável – a imaginação corre solta, criando hipóteses de que, provavelmente, o que se assistirá deva corresponder a um drama clássico. Antes de o espetáculo começar, vê-se uma mulher caída em cena. Duas pistas: o cenário naturalista e a mulher, vestida de vermelho, caída. O foco encontra-se na cena, mas o espectador é surpreendido por dois atores que, aparentemente bêbados, irrompem da plateia. No palco, os dois atores digladiam-se por meio de trombadas. Naquele cenário e com os figurinos realistas alguma coisa afigura-se fora de foco... Primeiro desmonte das hipóteses iniciais. A falta de sincronia entre as partes, àquela altura, remetia ao título da obra...
Levantada do chão, a mulher de vermelho e de cabelo à la Chanel, começa a falar. Fala confusa, repetitiva, sem revelar algo de si ou daquele contexto.

A atriz Tetembua Dandara é fantástica, compõe sua personagem de modo tão excêntrico (abrigando a duplicidade compreendida entre o inusitado comportamental e a tipologia de palhaço), que ao cabo de pouco tempo, parece desnecessário saber quem ela representa. O carisma e domínio da atriz intentam o jogo e a percepção segundo a qual, parafraseando verso de música: se verá que tudo é mentira. A mulher de vermelho não é personagem, é uma figura. Do mesmo modo os dois “trombetantes-atores”, também não são personagens, são figuras lúdicas. Ao se formular tal hipótese, desmontando todas as outras, o espetáculo se redimensiona, transforma-se em jogo de advinha...

Do estoicismo das pistas iniciais o espetáculo (construído, intuído em nossa cabeça) migra para o reinado do hedonismo e do prazer da diversão, do entretenimento. Trata-se de um exercício de entretenimento contando com a verve dos três intérpretes. Divorciado de outras preocupações, o espetáculo escorre como água para chocolate. Não há o que entender, mas o que se permitir.

No jogo instituído pelos atores e pela direção, ocorre um jogo sem que se saiba (e passa a não importar) como as peças se movimentam. Sabe-se que essas peças-figuras têm uma lógica não cartesiana, que se apresentam a partir de solos (corporais e falados, corporais, ou falados...) e que suas intervenções, pautadas pela experimentação performática assemelham-se enormemente nos chamados números de cortina do (pouco conhecido) teatro de revista.

Na obra, para além dos mencionados filme de David Lynch, Lewis Carrol, Dorothy Parker, pode-se perceber a suicida do filme Delicatessen (1991), de Dona Zero, personagem criada por Elmer Rice para o texto A máquina de somar (1922-23) e tantos outros efeitos-imagens que formam a colcha de retalhos que caracteriza a obra.
Do ponto de vista dramatúrgico, é bastante provável que a partitura do espetáculo seja fechada, mas os atores, por sua capacidade de jogo, conseguem transcendê-la e quase dar a entender que improvisam a todo o momento. Nesse particular, o mérito é da diretora e dos três intérpretes.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

"Corra Como um Coelho" faz paródia inteligente de clichês

CRÍTICA COMÉDIA 

"Corra Como um Coelho" faz paródia inteligente de clichês
Peça da Cia. dos Outros apresenta série de esquetes surreais que mostram o inusitado do teatro clássico

Lenise Carvalho/Folhapress
Os atores Carlos Canhameiro (à esq.), Rodrigo Bianchini e Paula Mirhan em cena do espetáculo

CHRISTIANE VIERA
CRÍTICA DA FOLHA 

Acentuada por iluminação quente de abajures, a cor ocre domina o palco, sugerindo aconchego doméstico. No cenário, todos os objetos apontam para um familiar drama de gabinete. O vestido vermelho de uma mulher imóvel no chão, porém, instaura estranheza.
A bizarria apresentada por este quadro inicial se oficializa com a chegada de dois bêbados, em explosão inesperada e cômica. A partir daqui, uma série de esquetes flerta com um mundo clássico, obsoleto, que rapidamente será desmontado em algo inusitado.
Com direção da Cia. dos Outros, "Corra Como um Coelho" é uma reestreia e o nono espetáculo da Cia. LCT, um grupo de pesquisa teatral cuja proposta é a experimentação artística.
Muito além disso, esta montagem consegue, com encenações rápidas, concretizar uma paródia inteligente e divertida de inúmeros clichês teatrais.
O trio de atores é primoroso no jogo frenético entre estilos dramáticos neste universo onde não há abertura para justificativas ou desenhos claros de personagens.
Trata-se apenas de figuras que circulam pelo palco ao som recorrente de palmas, frisando a manobra engenhosa da trupe entre referências distintas que vão de Dorothy Parker (1893-1967) a Lewis Carroll (1832-1898). A atriz Paula Mirhan tem pleno domínio de seu carisma ao interpretar uma dondoca com tendências suicidas que se move como uma boneca em desalinho. É especialmente graciosa quando canta ou irrompe em monólogos que narram trivialidades, suas idas ao teatro e eventuais encontros.
Suas tentativas à criação de uma narrativa são sempre desbaratadas pelas invasões de Carlos Canhameiro, um ingênuo apaixonado, e Rodrigo Bianchini, um rapaz ferido por razões desconhecidas.
Seja ao despejar leveza em musical animado ou exalar testosterona em show de luta livre, os atores estão encantadores. Caberá ao espectador optar entre cavar buracos no esforço em extrair algum juízo dessas situações surreais ou então entregar-se para o prazer da caça por um teatro que corre como um coelho. Esperto e ligeiro.

CORRA COMO UM COELHO 

QUANDO sex. e sáb, às 20h30; até 24/08
ONDE Bilheteria da Galeria Olido
QUANTO Grátis
CLASSIFICAÇÃO 12 anos
AVALIAÇÃO bom